Pele de Asno (1970), dir. Jacques Demy
Em Pele de Asno, Jacques Demy mergulha em um conto de fadas perturbador de Charles Perrault e realiza uma proeza singular: conta uma história de incesto e fuga com a ingenuidade de uma fábula e a paleta de cores de um sonho.
Logo de início, o filme nos joga num tema chocante: um rei, devastado pela morte da esposa, decreta que só se casará novamente com alguém que tenha a beleza da falecida rainha, e essa pessoa é a sua própria filha. É um material pesadíssimo, que poderia render um drama psicológico sombrio. Demy, no entanto, escolhe um caminho oposto, tratando essa crueldade com uma leveza desconcertante e franqueza quase infantil. Nós percebemos isso quando a filha, interpretada por Catherine Denouve, demonstra incerteza sobre a situação em que se encontra, confusa pois sente amor pelo pai, mas não sabe diferenciar do amor romântico. Essa abordagem não minimiza o horror da situação, mas sim o coloca sob uma luz diferente, mais alegórica e menos explícita, permitindo que olhemos para o cerne da fábula: a perda da inocência e a luta por autonomia.
A fotografia, os cenários e os figurinos são importantíssimos para ambientar a trama. Em um reino de cores pastéis, dourados e tons de cereja, a beleza estética cria um contraste genial com a feiura do tema. A luxúria do pai parece mais absurda e doentia justamente porque acontece num lugar que parece saído de um livro de ilustrações. A cor não é só enfeite, é uma narrativa por si só.
Por fim, é difícil não mencionar um dos momentos mais icônicos e anacrônicos do filme: a chegada da fada madrinha e do rei de helicóptero. É uma cena de genialidade demyana. No meio de um conto de fadas clássico, eis que surge uma máquina moderna, barulhenta e prática para resolver o problema mágico. Essa junção do fantástico com o tecnológico é hilária, surreal e quebra completamente qualquer expectativa de realismo. É Demy nos lembrando que estamos assistindo a um conto de fadas, e que nas fábulas, a lógica dos sonhos sempre prevalece.