Tangerine (2015), de Sean Baker e Chris Bergoch

De antemão peço licença à leitora para que me permita ruminar pelas minhas memórias e sentimentos viscerais antes de chegarmos ao núcleo do gênero literário que esperam encontrar neste texto: uma crítica cinematográfica. O contato que fazemos com obras de arte, com mensagens e narrativas em geral se conectam nas camadas temporais de nossas vidas de uma forma que também acontece com as pessoas que nos fazem ser quem somos. Fui marcada por muitas pessoas, mas hoje falo de uma em particular que encontrei em n momentos de minha vida adulta, mas cujo contato no contexto da exibição do filme fez ganhar novas camadas.
Na segunda metade de 2019, aos 18 anos e a há poucos meses morando sozinha em uma cidade nova, relativamente grande (como podemos descrever a capital de Santa Catarina?), conheci muitas pessoas e, talvez mais do que nunca até aquele momento, muitas pessoas trans em todos os lugares que frequentava. Uma dessas pessoas foi introduzida a mim em uma festa por uma amiga em comum e nos reencontramos em noites distintas. Não pensei muito sobre. No começo de 2023 nos reencontramos quando, ainda em um espaço noturno, descobrimos que tínhamos passado para a mesma turma de mestrado. Viramos colegas e um lugar novo para mim – a pós-graduação – virou um espaço que desde sempre era ocupado por pessoas trans – pessoas trans negras. Realidades particulares podem ser nossa verdade, não importa o que as estatísticas dizem.
Nunca fomos melhores amigas, mas há uma conexão inegável que esteve presente todos os dias em que dividimos uma sala de aula, um tipo de segurança que eu só aprendi a entender muito tempo depois, em momentos de crise. Eu respeitava e admirava sua pesquisa, ela se engajou em minhas falas e juntas parecia haver uma democracia sexual na qual pessoas trans fazem parte da sociedade de forma integral. Quando meu mundo desabou eu pedi ajuda e recebi, quando a vida não fazia sentido eu sabia que, pelo menos em sala de aula, eu não estaria sozinha. Em um mundo em que a insegurança e a apreensão ditam os nossos níveis de ansiedade constante, aquele pouco de segurança era um porto seguro turvo. Em um determinado momento, no ápice da minha fragilidade mental, essa mesma pessoa, com um ar de jocosidade, disse algo que me abalou muito. Perdi de certa forma essa rocha. Não nos vimos por meses.
Ontem, na exibição do filme Tangerine (2015), do diretor estadunidense Sean Baker, ela chegou na sala de projeção e se admirou em me ver lá. Eu também me admirei, mas acho que consegui esconder minha expressão. Ela se sentou ao meu lado e vimos o filme juntas, mesmo que com uma distância emocional densa. Rimos juntas, arregalamos nossos olhos juntas, fizemos piadas baixinho durante a exibição e, no final, choramos juntas. Após a exibição houve um debate e muitos comentários da audiência – majoritariamente cis – fizeram com que nos encarássemos e percebêssemos que as pessoas ali olhavam para o mundo das personagens Sin-Dee e Alexandra como um mundo estrangeiro: linguagem, as referências, as estéticas, as violências internas e externas e a melancolia de existir em um espaço constante de possível abjeção social. Para nós a pintura feita por Baker, seu elenco e sua equipe era dolorosa e saborosamente próxima.
Desde então tenho digerido o filme e, com ele, como o fato de ter essa pessoa por perto é algo importante para mim. Nada tão drástico aconteceu entre nós, como no nível de uma traição com cafetões ou a violência física e psicológica de ser atacada com urina humana. Ainda assim, a rusga mal processada (por mim) começou a descer pelo intestino delgado metafórico de meu corpo real a partir daquele momento. O filme acabou e o silêncio desconfortável me lembrou que há conforto possível mesmo no momento mais pesado. Segurei a mão dela. Olhamo-nos quando a luz se acendeu.
Para a leitora que nada sabe sobre a obra ou sobre a vida da autora, o relato acima pode ser enigmático, portanto cabe destacar que o filme de Baker retrata a vida de mulheres trans negras trabalhando na prostituição em Los Angeles, nos EUA, e das pessoas com quem elas interagem. Não costumo falar de mim em minha escrita – mesmo que o ato de escrever não seja nada além de um exercício narcísico no qual falamos de nós mesmas –, mas para fins didáticos cabe indicar que sou travesti, sou negra, conheço emocionalmente os cenários de Tangerine e me insiro dentro de uma carreira acadêmica no Brasil. O filme me tocou mais do que gostaria de assumir, mas aceito que a escrita é o lugar para me tornar vulnerável.
As cores são vibrantes e ao mesmo tempo os cenários são miseráveis, de forma a devorar seus olhos com uma paisagem e estética quente e suja. O título é certeiro ao descrever o lindo laranja do pôr-do-sol que marca o começo da noite – noite essa tão conhecida por nós. Muitas vezes pensava ser capaz de sentir o cheiro de um homem nojento, de um banheiro insalubre e de drogas no ar; o filme é bastante estilizado, mas ainda muito palpável. A música é estridente e combina com a fotografia de uma forma que me agrada muito, fazendo o mundo do começo da década de 2010 ser ainda mais palpável em diálogo com as imagens capturadas pelas câmeras digitais de aparelhos celulares. O mundo é vívido e cruel e as atuações de Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor nos papeis principais carregam o filme – mesmo que o filme se carregue por si mesmo.
Não sabia nada da obra antes de entrar na sala de exibição. Também sabia muito menos de mim mesma. Saí daquela sala, daquela aula, daquele debate e daquela interação mudada. Não me sinto mais leve, não houve catarse e não acho que um final feliz me espera no final da minha história. Mas saí revigorada na minha crença do cinema como arte e da importância de as pessoas trans estarem juntas, perto e em proteção.
Tangerine apresenta o desenrolar de um único dia, vivido com intensidade em uma busca por vingança, dinheiro ou simplesmente afeto. O filme é potente e hilário ao mesmo tempo e acredito que essa seja sua maior força. Enquanto assistia, houve momentos em que eu ri e momentos em que eu gargalhei e, ainda assim, é nítido para quem assiste que estamos diante de algo muito mais profundo do que apenas boas risadas. A gente ri, mas com a mão na consciência, porque sabemos que o que está sendo retratado é real e completamente verdadeiro.
A obra é visualmente bonita. Os tons alaranjados, que dão nome ao filme, trazem ao longa uma característica autêntica. A trilha sonora energética contribui para a construção da vibração da cidade. E o ritmo frenético da montagem reflete o caos e a aleatoriedade que fazem parte do dia a dia das personagens.
A decisão de filmar com celulares, ao invés de grandes câmeras, favorece performances mais naturais por parte dos atores. Há uma crueza, uma espontaneidade que atravessa a tela. O filme parece tão íntimo que me fez sentir como uma amiga próxima das protagonistas, comprando seus dramas, anseios e paixões. É como estar lá, caminhando com elas pelas ruas de Los Angeles, ouvindo suas conversas e sentindo suas frustrações.
Mais do que retratar uma cidade, o longa propõe revelar a verdadeira Los Angeles, como na cena em que Sin-Dee caminha pela Calçada da Fama, desfazendo o glamour da metrópole e mostrando quem realmente circula por ali. Mas o filme vai além de Los Angeles. Poderíamos facilmente ver essas cenas no centro-leste de Florianópolis, ou em qualquer outra cidade. E é justamente isso que torna a obra tão interessante: ela dá visibilidade a histórias, quase sempre ignoradas, que vivem cruzando o nosso caminho.
Entendi Tangerine como um grito por pertencimento, dignidade e afeto. E o filme, ao dar espaço e voz a quem costuma ser silenciado, deixa explícito o desejo escancarado por reconhecimento, seja como cantoras, esposas, ou simplesmente como mulheres.
O filme “Tangerine” de 2015, dirigido e escrito por Sean Baker e Chris Bergoch é descrito como uma comédia e um drama e executa ambas as propostas com profundidade, mas com alguns elementos problemáticos. O filme de baixo orçamento, filmado com Iphones e com poucos atores profissionais alcança uma realidade pouco explorada ao realizar um diálogo sincero com a realidade abordada de um dia em Los Angeles para um grupo de pessoas que apesar de serem postas à margem se configuram como protagonistas desta história. A violência social e sexual é abordada de maneira mais leve do que geralmente se vê em produções cinematográficas, mas não deixa de se fazer sentir genuína e cruel na maioria do tempo. Se houvesse uma grande crítica à obra é de que a violência, muitas vezes praticada por quem também é vítima, não é abordada com toda a profundidade que o tema merece, mas como um todo o filme faz um bom trabalho de tecer crítica aos valores sociais que muitas vezes desumanizam, invisibilizam e forçam pessoas a viver mentiras.
Além de um retrato sob uma perspectiva pouco explorada, o filme conta com uma trilha sonora, elementos visuais e edição em conversa com o humor rápido e o roteiro dinâmico. Diferente de muitas obras mais comerciais Tangerine tem sucesso em navegar entre seus gêneros a favor da história a ser contada e faz com que as personagens deixem de ser estereótipos e passem a ser vistos como são, seres humanos que se esforçam para viver e se alegrar em um mundo que os incentiva ao ódio e a margem.
A estrutura da narrativa é parecida com os estágios da embriaguez. Primeiro a excitação e exagero, depois o ápice da loucura, então a ressaca e por fim a lucidez. O filme poderia escolher por acabar no ápice, mas escolhe por continuar e explorar o depois, dialogando com o fato da vida não ser um filme perfeito em que acaba em um final feliz, mas que nem por isso é só tristeza, porque afinal a trama é só um dia nas vidas das personagens, um dia que deixa mais perguntas que respostas e que mostra um fim só para nós que assistimos.
Davi Miranda Leite
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Laura D'Amoreira
Dirigido por Sean Baker, lançado em 2015 e filmado inteiramente com um iPhone 5s, o longa acompanha a jornada de Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez) e Alexandra (Mya Taylor), duas mulheres trans que percorrem as ruas de uma Los Angeles pouco mostrada, na véspera de Natal, em busca de respostas e vingança.
O filme apresenta a vida de três personagens, cada um com suas próprias ambições naquela noite de Natal. Sin-Dee está determinada a encontrar a mulher cis com quem seu namorado Chester a traiu, e levá-la até ele para obter respostas. Alexandra, sua melhor amiga, inicialmente tenta acompanhar Sin-Dee, mas depois foca em divulgar seu show solo em um bar em L.A. — "at 7:00", como ela repete tantas vezes que ainda ecoa na minha cabeça. Já Razmik, um taxista húngaro, leva uma vida dupla e está em busca de... se divertir um pouco mais naquela noite.
Os enredos se entrelaçam em um clímax caótico e engraçado, em que eu torcia para que a funcionária da loja de donuts não chamasse a polícia — só para o filme nunca acabar.
Assistindo ao filme, senti uma grande aproximação com a realidade dos protagonistas. Acredito que isso se deve à filmagem feita inteiramente com um iPhone, aos cenários reais e marginalizados de Los Angeles, e ao roteiro com diálogos naturais. Esses fatores trouxeram um olhar diferente à produção, bem distinto do que estou acostumado a ver em filmes megaproduzidos.
O desenvolvimento dos personagens — transitando entre o drama e a comicidade (às vezes de forma um pouco forçada, o que chega a ser desconfortável em algumas cenas) — também contribui para essa sensação de proximidade com a história.
Sem contar a trilha sonora: com batidas tiradas do techno, ela conseguiu me manter ainda mais envolvido na trama e curioso pelo seu desfecho.
Gustavo Fernandes
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Em Tangerine, acompanhamos diferentes narrativas de personagens humanamente reais, cujas angústias, desejos e frustrações transparecem ao longo dos quase 90 minutos, nos aproximando de suas vidas e de suas intimidades.
Pontuado por um ritmo intenso ao longo de um dia inteiro na véspera de Natal, atravessamos uma realidade crua e desglamourizada de Los Angeles, longe do que costumamos ver nas propagandas midiáticas que performam o “sonho americano”.
Uma característica de Tangerine, que eu já havia notado em outra obra de Sean Baker, é o humor ácido e peculiar. Bastante peculiar. Um tipo de humor que não é engraçado nem divertido, mas involuntariamente cômico pela culminação caótica do que vínhamos acompanhando. Talvez o maior exemplo disso, para mim, seja a cena da lanchonete de donuts, em que as narrativas se encontram numa cacofonia visual e auditiva. É cômico porque é intenso, é desconfortável. Sentimos vontade de rir, só que não é uma risada de prazer. É aquela risada que, se levada adiante por muito tempo, termina num choro desesperado, como o da criança desamparada em meio àquela confusão.
O que sobra depois disso tudo? Quando fecham-se as cortinas e vai-se embora a audiência que ansiava pela discórdia. Quase como uma antítese a tudo que acompanhamos até então, a sequência final do filme é pontuada por momentos agridoces de contemplações solitárias das realidades vividas pelas pessoas por quem desenvolvemos sentimentos. Em oposição à trilha sonora frenética e pulsante da maior parte do longa, quando o sol alaranjado se põe, somos aquietados por uma discreta melodia etérea com sintetizadores.
Ao mesmo tempo que fica o gosto amargo, fica também o acalento que sentimos pelo apoio que Sin-Dee e Alexandra sustentam uma na outra.
O longa de baixo orçamento Tangerine lançado em 2015 e dirigido por Sean Baker (vou reescrever a frase): O longa de baixo orçamento Tangerine lançado em 2015 e com o elenco composto por: Mya Taylor (Alexandra); Kitana Kiki Rodriguez (Sin-Dee); e quantas outras atrizes transexuais que participaram incide luz,um laranja de fim de tarde, em assuntos que estavam somente na escuridão da noite. Incide essa luz laranja sobre uma Los Angeles que não observamos em filmes da indústria ‘famosa’,aquela não considerada bonita e que está marginalizada. A Cidade dos Anjos vista através de lentes de iphones e cores de tangerina, nos apresenta a sua outra face real, tão real que o filme foi gravado nas próprias ruas dela mesma. O ponto de não ter usado cenários foi algo que me chamou atenção, podemos observar as pessoas que não fazem parte do elenco e suas reações. As cenas como por exemplo, do homem gravando de dentro do carro as mulheres na rua; o idoso se alongando no ponto de ônibus tornam o filme mais orgânico e natural. Essas pessoas também evidenciam a realidade daquele local e do preconceito com mulheres transexuais mantido em nossa sociedade.
Essa mesma luz alaranjada é projetada sobre a realidade dessas mulheres que são empurradas pelo sistema à prostituição, do valor delas serem somente definidos como objetos de sastifação e da posse do homem em relação a elas. Isso se acentua ainda mais quando ao longo do filme vemos as violências contínuas que elas sofrem e de nenhum auxílio possuído, somente de um cafetão e um homem casado que não as querem como pessoas. Esse contexto me lembrou uma entrevista da Gabriela Medeiros no programa Conversa com Bial da GNT, onde o Bial coloca uma fala que Gabriela havia feito: “[...] Para os homens eu sou só um delírio da noite, parece que eu vivo só a noite fantástica desses homens e quando eles acordam vem o dia. Então sinto que eu vou ser sempre a noite e nunca o dia de alguém, eu espero um dia ser o dia de alguém”(GNT, 2024). Ainda na mesma entrevista Gabriela coloca:
“Eu sinto que eu sou sempre o presságio. Eu me sinto sempre efêmera, é um corpo muito objetificado. A pessoa sempre vem com a curiosidade,com fetiche, nunca num lugar de afeto. [...] Quando eu falo sobre a noite, é que parece que eu só existo na noite realmente para esses afetos e eu espero realmente um dia ser o sol de alguém e se não for, enfim vida segue”(ibid).
Esse trecho da entrevista evidenciou para mim a ideia que Sean Baker passou no longa, a ideia de sempre ficar na noite, escondida no relacionamento e na própria sociedade.
Ademais, o longa mostra a amizade mantida entre as duas protagonistas, onde nesta relação elas podem contar uma com a outra da forma mais sincera. Em questões técnicas, o filme possui grandes expoentes, para mim o mais importante é a fotografia que ele nos apresenta. As cores saturadas e a estética alaranjada traz o calor do sol se pondo, os diálogos são na maioria das vezes bem construídos e em alguns momentos hilários. O dinamismo de contar as duas narrativas coloca o filme em movimento frenético. Algo que me incomodou em algumas cenas, foi a trilha sonora frenética, acredito que não conversou inteiramente com as cenas que estavam sendo apresentadas.
Retornando, o longa trouxe a luz alaranjada aos assuntos discorridos nesta crítica e a outros. Quando lhe assistia senti que estava gravando o dia retratado, por causa da conectividade que ele pode gerar. Além disso, me vi representado no longa Tangerine, o preconceito; a marginalização; a busca pelo reconhecimento e a amizade estão presentes na minha vida sendo LGBTQIAPN+ e de tantas outras pessoas da comunidade, que se assistirem vão se reconhecer também.
REFERÊNCIA
Canal GNT, Gabriela Medeiros fala sobre Buba, Renascer e transição de gênero aos 18 anos: Conversa Com Bial. Youtube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SelWnfkuF80 . Acesso em: 30 abr. 2025.
TANGERINE: O SONHO AMERICANO SANGRA LARANJA NOS ASFALTOS DE L.A.
por Gustavo Bianchini V.
Toda a experiência vive e morre pela escolha criativa de gravar todo o filme com um iphone, toda a direção se curva a necessidade de criar essa autenticidade. Admito que no início eu fiquei meio tirado da experiência, mas com o tempo e com a sólida performance do elenco, tu acaba se entregando aos tons laranjas e aí a coisa fica legal mesmo. As filmagens por iphone são gravadas naturalmente na rua, ou seja, muitos dos “extras” não sabiam que havia um filme rolando, e os consequentes olhares de confusão são perfeitos para dar a tonalidade de uma trama nas margens do Sonho Americano.
Destaque vai à dupla principal, Sin Dee (Katana Kiki Rodriguez) e Alexandra (Mya Taylor), duas mulheres trans sem experiência formal no cinema, mas que seguram todo o filme com uma energia e uma química inacreditável (as duas viviam juntas antes da oportunidade com Tangerine). Por não serem atrizes “profissionais”, sua performance tenta pouco performar e apenas é. Não são personagens instrumentalizadas para nossa experiência, elas existem para além dos três atos de uma história e das convenções formais. Apenas são.
O Sean Baker trabalha muito bem com esses cenários absurdos que vão ficando cada vez mais enrolados, algo bem de novela e que transforma drama interpessoal em entretenimento. E antes que você se dê conta, tu tá assistindo uns oito personagens discutindo ao mesmo tempo sobre umas cinco coisas diferentes em duas línguas distintas, tudo em uma lojinha de donuts...
Mas não se engane, a narrativa vai além do humor, o filme também tem o que dizer e o faz muito inteligentemente. É uma fábula da cinderela perdida nas ruas de Los Angeles, marginalizada e comercializada pelo naufrágio ideológico que é o tal Sonho Americano (o próprio nome da protagonista remete ao conto de fadas). Temos na busca de Sin Dee também uma procura por identidade, saindo da prisão ela busca validação de que não é apenas “mais uma” e isso se manifesta na busca pelo namorado, mas não para exercer vingança por ter sido traída, pois essa raiva é dirigida mais diretamente à amante, que é abusada fisicamente ao longo da história, um bode expiatório para a frustração de Sin Dee.
Não quero revelar o final do filme, tirar do leitor a experiência de ver o curso caótico dos acontecimentos e casos como um espectador desavisado nas ruas de Los Angeles seria criminoso de minha parte. Me permitam apenas dizer que as cenas finais são uma aterrisagem perfeita, uma síntese temática que bate no espectador com a fria realidade do Pesadelo Estadunidense, mas que também mostra que essas pessoas existem além de seus papéis no sistema, que quando a estrutura esmaga, a identidade e a solidariedade ainda restam. E se o Sonho Americano sangra laranja, Tangerine nos mostra que ainda há cor, vida e dignidade entre os estilhaços, mesmo quando tudo o que resta é andar pelas ruas de L.A., com alguém ao lado pra segurar tua peruca.
Crítica: Tangerine (2015), de Sean Baker
por Amanda M
Filmado inteiramente com um iPhone 5s, Tangerine, dirigido por Sean Baker, rompe com os padrões do cinema convencional não apenas em sua técnica, mas também em sua escolha de protagonistas, enredo e cenários. O longa mergulha nas ruas de uma Los Angeles invisibilizada, marginal, vibrante, e por vezes brutal, acompanhando duas mulheres trans, Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez) e Alexandra (Mya Taylor), em uma busca por respostas e reconhecimento na véspera de Natal.
A câmera inquieta e próxima, quase documental, nos coloca dentro da agitação emocional e física que define a trajetória dessas personagens. O uso do iPhone, longe de ser um artifício estético qualquer, se torna uma linguagem própria, capaz de capturar as nuances e contradições da cidade e de seus habitantes com uma urgência rara. Os cenários são reais, as ruas não foram fechadas, e a iluminação vem do sol ou dos letreiros de neon — e tudo isso colabora para uma sensação crua, honesta e visceral.
Sin-Dee é movida por uma fúria impetuosa: quer confrontar a mulher cis com quem seu namorado a traiu. Alexandra, sua amiga leal e sonhadora, tenta equilibrar a lealdade com a própria ambição de brilhar em um show solo, marcado, como ela repete incansavelmente, “às sete da noite”. Já Razmik, o taxista armênio, representa outra camada de complexidade: casado e com uma filha, vive uma vida dupla enquanto circula por L.A. em busca de prazer.
O encontro dessas histórias culmina em um clímax caótico e tragicômico, com direito a cenas em um donut shop que beiram o surreal. É um caos cuidadosamente construído, em que o riso e a dor se misturam, e onde o limite entre o real e a atuação quase desaparece.
A trilha sonora eletrônica, com batidas techno intensas, amplia a pulsação do filme, é como se o som acompanhasse o ritmo acelerado da cidade e das emoções dos personagens. É envolvente, quase hipnótico.
Ainda assim, Tangerine não é isento de excessos. Alguns momentos de humor forçado ou atuações descompassadas podem soar desconfortáveis. Mas talvez essa imperfeição contribua para a autenticidade da obra. Não estamos diante de uma produção que busca polimento, mas sim de uma que valoriza o risco, o improviso, o olhar marginal.
Tangerine é, acima de tudo, um filme sobre humanidade, em suas formas mais vulneráveis, explosivas e contraditórias. É um retrato potente da amizade, da sobrevivência e do desejo de ser visto, com uma sensibilidade rara no cinema contemporâneo. Uma obra que prova que grandes histórias não precisam de grandes câmeras, só de grandes olhares.