Cinema e filosofia - o nó da cultura e a costura da arte.
Saudações
Fui convidada pela organização da semana a comentar sobre cinema e filosofia, ou talvez filosofia e cinema, e ao aceitar lembrei-me da outra vez que participei, quando tratei de “o nó da cultura e a costura da arte”. Hoje, em continuidade àquela conversa, minha proposta não é apenas falar sobre a relação entre cinema e filosofia, mas apresentar alguns exemplos concretos dessa intersecção. Afinal, o surgimento do cinema no final do século XIX e início do século XX coincide com o florescimento de movimentos filosóficos marcantes, como o marxismo, o existencialismo, o pragmatismo e a fenomenologia.
Desde seus primeiros momentos, o cinema se revelou um campo fértil para o pensamento filosófico. Basta lembrar de Viagem à Lua (1902), de Georges c. Considerado o primeiro filme de ficção científica da história do cinema, foi inspirado pelos romances visionários de Jules Verne e H.G. Wells.
Méliès combina ciência, magia e uma imaginação visual exuberante. Embora o filme careça de lógica científica e se apoie em elementos teatrais e até absurdos, ele antecipa temas que se tornariam centrais para a ciência e para a filosofia moderna:
Viagens espaciais tripuladas Conceito de lançamento por foguete Forma aerodinâmica do projétil Exploração científica de corpos celestes Ideia de contato com vida extraterrestre A construção visual do espaço e da Lua. E, curiosamente, a semelhança com foguetes modernos pousando no mar.
É importante lembrar: em 1902, não havia foguetes, nem astronautas, nem uma teoria científica concreta sobre viagens espaciais. Méliès estava, com o cinema e sua imaginação, simplesmente inventando o futuro.
Nesse sentido, Viagem à Lua não é apenas um marco técnico ou estético — é também um exercício filosófico, que interroga os limites do conhecimento, da invenção e da realidade.
Poucos anos depois, cineastas soviéticos como Vsévolod Pudovkin, Dziga Vertov e Sergei Eisenstein desenvolveram teorias do cinema que se relacionavam com ideias filosóficas, como a dialética marxista. Essa militância orgânica é a base fundacional da pesquisa, descoberta e codificação da linguagem audiovisual, somada ao estudo da percepção (consciente e inconsciente, racional e irracional), tudo centrado “nas massas” incluindo seu lugar de protagonista.
Para Eisenstein, por exemplo, o cinema era uma forma de filosofia visual, capaz de expressar ideias abstratas sem palavras.
Com o o objetivo de motivar o espectador para a luta contra a injustiça pelo exercício da indignação contra qualquer tipo de opressão. De acordo com a teoria desenvolvida por ele, o espectador deve participar ativamente da recepção fílmico, unindo imagens na mente para construir sentido.
Ele acreditava que a forma cinematográfica podia mudar consciências, o que o torna não só um artista, mas um filósofo visual revolucionário.
“O cinema é, para mim, antes de tudo, um instrumento de luta ideológica.” — Eisenstein
Seu filme O Encouraçado Potemkin (1925), para além de uma obra-prima cinematográfica — é um manifesto visual recheado de ideias filosóficas, políticas e estéticas revolucionárias. Inspirado na dialética materialista, Eisenstein aplicava esse conceito à montagem.
Montagem como filosofia
Eisenstein via a montagem não apenas como técnica narrativa, mas como instrumento de pensamento.
Para Eisenstein o choque entre imagens cria uma ideia nova na mente do espectador.
Exemplo: uma multidão sendo massacrada (imagem 1) + botas marchando impiedosamente (imagem 2) = uma ideia de opressão brutal (síntese emocional).
No trecho acima, Eisenstein recria um evento historico. Reinventa. Ele atua como cinegrafista e testemunha ocular do acontecimento: o jovem de óculos, que filma, tem seu grito surdo e a expressão de pavor capturados e espelhados pelo aparato cinematográfico.
Temos então uma das grandes questões filosóficas abordadas pelo cinema: a relação entre representação e realidade que atravessa todo o século XX e se projeta para alem da atualidade.
Como sabemos, filósofos como Platão e Descartes exploraram a ideia de que nossa percepção do mundo pode ser enganosa. O cinema, ao criar realidades simuladas, ou simulacros de realidades, coloca essa questão em evidência.
Filmes como Matrix, de Lana e Lilly Wachowski, exploram a hipótese de que a realidade é uma ilusão, entrelaçando o Mito da Caverna de Platão com a dúvida cartesiana.
Matrix é um caldeirão de filosofia profunda, referências míticas, dilemas existenciais e questionamentos sobre realidade, liberdade e consciência.
No filme de 1999, quando o protagonista, começa a descobrir que há algo por trás da realidade aparente, uma realidade que é muito maior do que a humanidade consegue imaginar, ele entra em contato com um grupo de resistência liderado por Morpheus (temos aí uma referência à divindade grega que rege o sono e o mundo dos sonhos).
No mito de Platão, prisioneiros vivem acorrentados dentro de uma caverna, vendo apenas sombras projetadas na parede. Quando um deles escapa e vê o mundo real, ele entende que tudo que achava ser realidade era ilusão.
Thomas/Neo é esse prisioneiro. A Matrix é a caverna.
A realidade que os humanos vivem é uma simulação — sombras de um mundo verdadeiro, criado para mantê-los controlados. (O livro Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard, aparece em cena, na estante de Neo).
Baudrillard dizia que, na era digital, vivemos em simulações de realidade — onde os signos (imagens, dados) substituem o real.
A Matrix é o hiper-real, um mundo de aparências que suprime a verdade.
René Descartes questionou a realidade: Como posso saber que não estou sendo enganado por um gênio maligno que manipula meus sentidos?
Em Matrix, a dúvida de Descartes vira realidade: as máquinas são o gênio maligno, e tudo é uma simulação neural.
Thomas/Neo duvida dos sentidos, do corpo, do mundo - mas ao pensar e escolher, afirma sua existência.
E nessa breve e particular viagem espaço-temporal pela historia do cinema de invenção e a filosofia voltamos ao Brasil.
Cito Rogério Sganzerla como um dos cineastas mais inovadores e radicais, puro delírio crítico. Sua obra é marcada por uma fusão única de filosofia, crítica cultural e experimentação estética.
Sganzerla questionava a lógica cartesiana e a estrutura narrativa clássica e realista que predomina no cinema até hoje. Ele via a razão ocidental como uma forma de colonização mental e propunha um cinema que rompesse com essa estrutura.
Ele acreditava que a verdade do Brasil não poderia ser contada de maneira linear. Por isso seu cinema é caótico, fragmentado e excessivo; inspirado na estética do ‘barroco’, com sobreposições, ruídos e narrativas desconstruídas. Seu cinema é debochado, inteligente e anárquico. Mas por trás de tudo isso, há filosofia pura em forma de provocação.
Assim como Oswald de Andrade, Rogerio Sganzerla propunha a devoração cultural como forma de resistência, ele absorvia referências do cinema predominante (noir, western, filmes B) e as distorcia para criar algo próprio e subversivo.
Sganzerla defendia um cinema, feito com poucos recursos, mas cheio de invenção. Em filmes como O Bandido da Luz Vermelha (1968), realizado quando ele tinha 22 anos, usa o conceito da "estética do lixo", valorizando o improviso e a imperfeição.
Muitos de seus filmes são inspirados na linguagem do rádio, como em A Mulher de Todos (1969) e na sua obsessão por Orson Welles (Nem Tudo é Verdade, 1986). Ele via o rádio como um veículo caótico e livre, oposto à rigidez do cinema clássico.
Creio que apenas com esses pequenos trechos de O Bandido da Luz Vermelha e de A Mulher de Todos, podemos perceber como Sganzerla fez do cinema um espaço experimental de liberdade filosófica e estética. Ele não via o cinema como uma arte de contar histórias, e, sim, como uma experiência sensorial e intelectual que desafia o espectador;onde o personagem vira um signo, um canal para o delírio social.
Seu pensamento era e é um ataque à colonização cultural e um convite ao caos criativo. Aqui não se trata de representar o real, mas de inventar realidades.
Em vez de buscar um cinema brasileiro “limpo” e “universal”, ele abraçou o lixo cultural, o trash, o pop degenerado.
Rogério Sganzerla fazia um cinema livre, rebelde, caótico em um mistura de filosofia, política e vanguarda — porque via a arte como luta simbólica.
Ele desconstruia para libertar.
Desorganizava para abrir os olhos.
Ironizava para fazer pensar.
“Cinema é arte do contrabando.” — e filosofia também.
Assim termino.
Muito obrigada.