The Cook, The Thief, His Wife And Her Lover (1989), dir. Peter Greenaway


The Cook, The Thief, His Wife And Her Lover – Um teatro indigesto de canibalismo  social 

por Gustavo Bianchini V. 

Queria começar essa resenha compartilhando uma expectativa que tive antes mesmo de  ver o filme, que acabou afetando minha percepção do próprio de um modo que acho  interessante. Meu gosto pessoal é de ver filmes sem saber uma vírgula de sua sinopse,  pego o título e vambora, o que vier veio. Desse modo, quando me deparei com o título do  filme pela primeira vez, abri um sorriso grande. O chefe, o ladrão, sua mulher e o amante.  Que coisa mais pitoresca, todas essas relações e papéis expostos como uma receita de  bolo. Me preparei para uma comédia em linhas novelescas para passar uma confortável  noite em minhas cobertas........ Que noite foi aquela meus amigos leitores... que noite inesperada....... 

Primeiramente, antes de chegarmos na temática da narrativa, acho importante destacar a  incrível atmosfera que Peter Greenaway consegue criar, especialmente levando em  consideração que o filme se passa majoritariamente em quatro cenários distintos: a  cozinha, o restaurante, seu banheiro e a rua de trás do espaço. Todos são filmados de  modo distinto, com destaque especial à iluminação, a cozinha mais cinza, o banheiro  branco asséptico e o restaurante vermelho sanguíneo. Além disso, o diretor estabelece  uma relação dialética entre personagens e espaço, roupas trocam de coloração quando  transitam entre cenários e emoções, as luzes do restaurante se distorcem entre o vermelho  do desejo, do ódio e do sangue derramado. Tudo isto garante um dinamismo teatral ímpar,  essencial para manter a atenção focada em um filme que escolhe falar pouco. Entretanto,  me recuso a afirmar que estamos falando de um filme bonito, ao contrário, acredito  estarmos falando de um filme bem feio. Propositalmente feio. Cuidadosamente  manufaturado (para ser feio). Acredito que consiga explicar essa contradição dizendo que  o cuidado técnico em fazer o mundo conversar com seus personagens é imaculado,  infelizmente para nossos sentidos, estes personagens não se relacionam rindo, e o mundo  não se manifesta floridamente. 

O grande antagonista da narrativa é Albert Spica, o ladrão, dono do restaurante do chefe  e marido da esposa. Spica toma conta da primeira metade do filme, senta no centro da  mesa e está a todo momento invadindo as cenas, calando todos os outros personagens com suas atitudes agressivas e grosseiras. O personagem é um furacão (in)humano na  narrativa e muito disso se deve pela atuação impecável de Michael Gambom, que atinge  uma maldade muito específica, pouco pautada no maquiavelismo teatral dos grandes  planos, mas sim naquela indecência do “tiozão”, com os comentários obscenos na mesa 

e a atitude do patriarca machão dono de sua esposa e de todos que o cercam. É um dos  vilões mais perturbadores que já tive o prazer de ver em tela, não pelos seus atos de  violência física e psicológica (que em momentos beiram ao impossível de assistir), mas  porque, em algum sentido, eu reconheço sua maldade. Já conheci um Albert Spica, não  com esse nome, mas encontrei em tons de voz, mesas de jantar e grupos em redes sociais. 

Em contraponto a esse mal conhecido, temos Georgina, a mulher vítima da agressão  marital, que apenas no olhar se envolve em um relacionamento secreto com Michael, um  bibliotecário que também come no restaurante. Com ajuda de Richard Borst (o chefe da 

cozinha), os dois começam a se envolver fisicamente nas entrelinhas dos jantares e  escondidos dos olhares do carrasco Spica. A maneira com que o filme retrata essa relação  é bem interessante, posto que durante a primeira metade do longa-metragem, os dois não  trocam uma só palavra entre si, de modo que o romance é, inicialmente, centrado  puramente no desejo pelo corpo (ironicamente, o próprio Spica precipita os dois a  começarem a conversar, apresentando Georgina para Michael como forma de provocação,  que apenas aproxima emocionalmente os amantes). 

Esse foco no desejo pelo consumo dos corpos, seja esse desejo consumado pela violência,  pelo sexo ou pela gastronomia, me parece conversar com uma crítica central que se forma  na linguagem do filme. Acredito que a narrativa construa Spica como um reflexo do  “Grande Homem Britânico” (a atuação de Gambom se utiliza muito do sotaque inglês  londrino e de suas gírias, algo muito familiar aos ingleses da época). Neste sentido,  podemos traçar uma crítica direta ao caráter desse patriarca inglês, um homem que se  julga civilizado, se apegando à estética culta e refinada para esconder a barbárie natural  de sua existência (em uma cena crítica para a construção do personagem, Spica inventa  aos seus capangas que os grandes líderes do mundo todos tinham preferência por comidas  do mar, em uma tentativa de se conectar aos “grandes homens” como Napoleão e  Churchill).  

Na realidade, o homem inglês é um porco, sem cultura, que apenas vive do desejo de  consumir, consumir comida cara com as mãos, consumir o corpo feminino como objeto  e consumir do corpo de trabalhadores que de fato sustentam sua existência. O filme ter  saído ao fim do governo de Margaret Thatcher, o período em que o conservadorismo  reacionário inglês assume protagonismo na política interna, é apenas mais um ponto que  corrobora ao caráter disruptivo que sua narrativa assume. Não quero explanar o final, mas  acredito que ele converse MUITO bem como a catarse e a resposta ao Grande Homem,  mas enfim, resguardo o direito do leitor de experienciar isso por si próprio. 

Retorno à experiência que tive ao ler o título, aquele pequeno riso desavisado que  esperava fish & chips para uma noite tranquila, um petisco em forma de novela, só um  conto de adultério e panelas. O título não mente, temos um Chefe, um Ladrão, uma Esposa  e um Amante. Entretanto, o play do filme esconde seu prato principal: a cozinha que serve  corpos para o canibal de gravata que senta no centro da mesa. Abençoado seja Peter  Greenaway, que como um bom chefe, soube cozinhar a intriga para entregar um prato  cheio de críticas profundas, com pimenta suficiente para fazer careta, mas jamais  perdendo sabor. 

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Crítica: The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (1989), dir. Peter Greenaway

por Amanda M.

Há filmes que são digestos lentamente, não por falta de ritmo, mas por excesso de camadas. The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover é um desses. Uma obra barroca, grotesca e hipnótica, em que cada plano parece pintado à mão e cada cena é uma provocação estética e ética. Peter Greenaway transforma o cinema em um grande banquete visual — ao mesmo tempo opulento e indigesto para discutir o poder, o desejo, o abuso e a decadência moral com um formalismo rigoroso e cruel.

A trama, simples em seu núcleo, se desenrola dentro (e em torno) de um restaurante de luxo, onde o ladrão Albert (Michael Gambon) exerce domínio sobre todos: clientes, empregados, sua esposa (Helen Mirren), e até mesmo sobre o espaço físico. Sua brutalidade é escancarada, cotidiana, quase ritual. Em contraste, sua mulher busca escape no amante (Alan Howard), num romance silencioso, intenso, quase impossível, florescendo entre banheiros e bibliotecas, longe da opulência podre que a cerca.

Mas se o enredo parece se prestar ao drama íntimo, Greenaway faz exatamente o oposto. Sua mise-en-scène é grandiosa e estilizada. Os cenários são meticulosamente organizados por cores, e a câmera se move com precisão quase matemática entre os ambientes do restaurante,  cozinha, salão, banheiro, que mudam de tom conforme os sentimentos em cena. Vermelhos intensos, verdes fúnebres, brancos quase clínicos: tudo se mistura numa dança lenta, teatral e inescapável. É como se Brecht encontrasse Caravaggio sob a direção de um cenógrafo renascentista.

A música de Michael Nyman completa esse universo com repetição e tensão. A trilha pontua os gestos mais triviais com uma solenidade absurda, sugerindo que até o ato de comer pode ser violento, ritualístico — ou, no caso deste filme, uma arma. Comer, aqui, não é apenas um prazer sensorial: é um ato de classe, de dominação e, ao fim, de vingança.

A crítica social e política do filme não é sutil. Albert representa um poder bruto e arrogante, o novo rico que tudo compra, tudo devora e nada entende. Seu vocabulário violento e limitado contrasta com a sofisticação visual ao redor, como se o próprio filme zombasse dele. A esposa é resistência silenciosa, mas não fraca. A partir do corpo primeiro oprimido, depois desejado, e por fim vingador  ela encontra uma forma de subverter a lógica do marido. A cena final, canibal, quase mitológica, fecha o filme com um gesto de horror tão extremo quanto coerente com tudo que veio antes.

Difícil sair incólume de The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover. O desconforto é parte da experiência. Pode-se odiar o excesso, o didatismo visual, ou o artifício que nunca se esconde  mas é impossível negar a força imagética e simbólica da obra. Greenaway não quer que esqueçamos nada. Ele nos obriga a olhar, mastigar e engolir um cinema que, mesmo belo, nos corrói por dentro


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