Mobile Suit Gundam I (1981), dir Yoshiyuki Tomino e Ryôji Fujiwara
“Essas máquinas valem mais do que vidas humanas?” Aparentemente sim
"Guerra", assim como "morte", é uma daquelas palavras que carregam consigo uma carga moral, um peso público e uma crise humana. Ambas são palavras que parecem evocar consigo sentidos completos e profundos que desencadeiam reflexões e mudam as pessoas. Ao refletir sobre a sua morte, o sujeito se transforma; ao pensar na possibilidade de uma guerra em seu país, o sujeito se posiciona. Todavia o pulo do gato robotizado está justamente no enquadramento real que é dado às abstrações dessas palavras. Não é a morte que nos move, é a perspectiva de nossa própria morte, é saber que um ente querido se foi, é a notícia da morte de uma celebridade querida ou de um massacre que vitimou muitas pessoas (mesmo que desconhecidas); é a possibilidade de uma guerra que nos afeta, ou a destruição de paisagens e populações que tomamos como importantes. Parafraseando a antropóloga brasileira Flavia Medeiros, tenho investido na máxima analítica de que há mortos e outros mortos. Para esta crítica, traço um paralelo para afirmar que também há guerras e outras guerras.
Em Mobile Suit Gundam I (機動戦士ガンダム, dir. Ryoji Fujiwara; Yoshiyuki Tomino, 1981), acompanhamos a experiência de civis que são levados a atuar dentro do exército de seu Estado-nação (se é que é possível chegar a conclusão de que tal configuração política exista no mundo do anime) em meio a uma guerra contra forças inimigas. Ah, é importante lembrar, tal guerra é lutada por meio de robôs gigantes, do tamanho de prédios, empunhando fuzis, mísseis e sabres de luz. Como espectadoras, somos expostas a um contexto intersticial em que não conhecemos a realidade de “paz” e a guerra se torna o status quo, com uma perspectiva de ficção científica (sci-fi) voltada a um desenvolvimento tecnológico militar desenfreado e aos imponderáveis de animes dos anos 1970 e 1980 voltados para um público jovem.
A guerra e o horror sentido pelo protagonista de 15 anos que se vê forçado a pilotar uma das enormes máquinas e matar inimigos – ao passo que assiste as pessoas de seu lado na guerra serem massacradas – são os pontos que parecem distinguir a obra de outras mídias de robôs gigantes focadas no objetivo de vender brinquedos para crianças. Ainda assim, o resultado final parece apenas ser um esforço mais elaborado – e inegavelmente belo – de vender os mesmos brinquedos ao passo que se apresenta como algo a mais. Esse algo a mais que na realidade se traduz em cenas entediantes e nas quais a melancolia e trauma do protagonista são sobrepostos com humor infantil de personagens crianças com vozes agudas.
A lerdeza e exaustão da narrativa talvez sejam explicadas pelo fato do filme ter sido produzido originalmente como três episódios de um seriado televisivo e posteriormente editada para ser um longa metragem de 139 minutos. O sobe e desce de uma narrativa episódica contrastam com a sequência contínua do filme. Múltiplas vezes acreditei que a história se encaminhava para o seu final apenas para me assustar com o fato de que ainda faltavam dezenas de minutos à minha frente na tarefa hercúlea de entender porque eu ainda estava assistindo.
Não quero que a leitora me leve a mal: eu gosto de animes, inclusive animes violentamente lentos de ação dos anos 70 e 80. Nada mais saboroso em um sábado moroso do que um episódio de Dragon Ball (1986 - 1989) ou Cavaleiros do Zodíaco (1986 - 1989), nos quais uma única batalha pode levar até 5 episódios e um diálogo se estende por múltiplos intervalos comerciais. Mas essas histórias ganham força por conta de sua mídia episódica. Talvez o horror de cadáveres empilhados e explosões que afetam as vidas de populações inteiras me afetassem mais se eu tivesse tempo entre cada episódio para digerir o que ocorria.
Para além do formato e da lentidão narrativa, as personagens são estranhamente ocas e as mulheres ainda mais. Todas as mulheres da história são rasas cuidadoras, tornam-se histéricas em meio a guerra e servem apenas como suporte para a narrativa masculina. Já percebeu aquela trope em filmes de zumbi na qual meninos adolescentes recebem armas para lidar com o apocalipse antes do que mulheres adultas? Bom, neste filme um garoto de 15 anos incapaz de preparar a própria comida recebe uma arma de extermínio em massa antes de qualquer mulher adulta. Ainda na comparação entre elementos do filme e outros gêneros consolidados, creio que seja importante colocar em diálogo o os robôs gigantes como tema para discutir guerra e o monstro Godzilla, o qual serviu originalmente como uma analogia para as bombas nucleares que atingiram o Japão em agosto de 1945.
Em Gojira (Godzilla, dir. Ishirō Honda, 1954), um monstro gigantesco, maior que arranha-céus, destroi um cenário urbano japonês em uma alusão a devastação monstruosa e incompreensível do ataque nuclear realizado pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Como meros humanos ou até mesmo o exército podem lidar ou quem dirá combater algo tão inimaginavelmente devastador? A relação entre o horror artístico do monstro gigante – que eventualmente foi transformado em brinquedo para crianças – e o horror real de uma guerra aparece de uma forma podemos traçar paralelos com a aberração e repúdio ao desenvolvimento tecnológico da bomba nuclear. Em Mobile Suit Gundam I a tecnologia é algo natural e o desenvolvimento de armas de guerra é apresentado como o caminho, mesmo que o ato de guerrear seja algo ruim.
Voltamos para a máxima de que há guerras e outras guerras. Quando assisti Godzilla pela primeira vez, uma aflição tomou conta de mim ao imaginar um terror inenarrável e as bombas nucleares como uma performance estadunidense de poder absoluto. A guerra estava vencida, o extermínio foi uma escolha política pautada na consolidação dos EUA como a maior potência mundial por meio do excesso. Quando o mundo fantasioso de Gundam me apresentou a guerra, questionei: porque devemos simpatizar com a população atacada? Seria essa uma máxima liberal de que toda vida vale igualmente? Porque há guerra? Quais são as defesas ideológicas de cada lado? Como se configura esse mundo futurista de estações espaciais e por que ele está em guerra? A abstração da guerra, para mim, não pareceu suficiente para legitimar os atos de extermínio também produzidos pelos protagonistas. Não há humanismo universalista capaz de dar conta das complexidades das guerras e da morte como ferramenta política em tempos de "paz".
Ao não entender por que devo me envolver emocionalmente com esse lado da guerra (além de imagens superficiais), fico apenas com personagens irritantes, estereótipos de gênero, explosões bonitas e brigas de robô gigante feitas para vender brinquedo. Mais plástico. As premonições pessimistas do filósofo camaronês Achille Mbembe e do antropólogo saudita Talal Asad ganham forma na representação de um mundo no qual a tecnologia se torna a salvação para tudo e aos poucos (ou a uma velocidade assustadoramente rápida) a humanidade e a Terra passam a ruir. Godzilla me diz para empatizar com a realidade japonesa e questionar o desenvolvimentismo que levou a criação da bomba; Gundam me diz que guerra é ruim como um discurso liberal generalista e me manda comprar brinquedos. Eu senti o estômago embrulhar na primeira visão de múltiplos corpos sem vida no chão, mas depois tive duas horas para perder o interesse.
Jo P. Klinkerfus
----
Mobile Suit Gundam I" Pilar erodido de um futuro espacial bélico.
O filme japonês Mobile Suit Gundam I de 1981 se trata de uma animação, primeira de uma trilogia de compilação de uma série televisiva, que se passa em um mundo futurista onde parte da humanidade é forçada a viver em colônias no espaço enquanto a maioria da elite continua a explorar os recursos naturais da terra. Nesse contexto surge um governo espacial monárquico ditatorial com traços fascistas em oposição ao governo mundial que rege a terra. A história segue um grupo de civis, muitos deles menores de idade enquanto são forçados pelas circunstâncias a lutar por suas vidas.
Passei a ter contato com este filme e com a franquia a que pertence por meio de uma experiência durante uma viagem ao Japão. Assisti ao mais recente filme da franquia “Mobile Suit Gundam GQuuuuuuX Beginning”, também um filme de compilação animado, sem entender muito por estar em japonês sem legenda. Ao voltar de viagem decidi começar por onde a franquia teve início e continuei assistindo. De início o que mais chamou a atenção no primeiro filme da franquia é a utilização de vários elementos que viriam a ser tornar recorrentes em outras produções animadas do Japão como o estilo artístico mais ocidentalizado inspirado em quadrinhos e produções norte-americanas. Na primeira vez que assisti o tempo passou muito rápido e cada acontecimento me pegou de surpresa, não parecia como as narrativas as quais estava habituado, era algo novo para mim e ao mesmo tempo antigo pelo contexto político em que se insere e pela sociedade que reproduz.
A obra teve um impacto cultural gigantesco e ainda é relativamente popular, com filmes da franquia ainda sendo feitos com o mais recente em 2024. Apesar desta influência o filme envelheceu mal em muitos aspectos: A disparidade de gênero é bastante evidente e apesar da obra poder ser considerada uma crítica à brutalidade na esfera militar, da masculinidade tóxica e da limitação do feminino ao cuidado e ao lar, se for é muito sútil e pelo contexto em que foi feita é provável que não seja este o caso. A animação, mesmo que memorável, é tecnicamente inferior em fluidez e qualidade quando comparada a produções mais recentes. A depender do gosto a animação, por vezes suja, simples demais e cansativa, pode ser um ponto positivo para quem não gosta das produções mais comerciais. Outro fator é a natureza episódica do original quando transposta para formato cinematográfico deixa a desejar por não dar tempo para absorver os acontecimentos, onde teria um crédito, abertura ou pausa comercial é substituído por um corte direto.
Apesar dos defeitos, a obra ainda é fascinante como um objeto de estudo da percepção sobre a guerra do ponto de vista japonês, que lembrando, tinham fresca na memória a segunda guerra mundial e viviam no contexto da guerra fria. As personagens e facções apresentadas nesta obra ainda são lembradas e viraram ícones na cultura popular e nas obras que viriam a seguir, tanto as partes da trilogia como sequências futuras da franquia, receberiam uma exploração mais instigante junto com uma análise política mais profunda e feita sob outras perspectivas. Contudo, tendo em vista o filme por si só, não se constitui como uma visão completa e serve mais de ponto de partida para o que seria feito depois, não deixando porém de considerar sua virtude como pilar, mesmo que um pilar erodido pelo passar do tempo e pela expansão do entendimento acerca do que a obra apresenta.
Davi Miranda Leite
----
GUNDAM I, OU: COMO EU (NÃO) APRENDI A PARAR DE ME IMPORTAR E AMAR O ROBÔ GIGANTE
Gustavo Bianchini V.
Primeiramente, gostaria de admitir algo ao leitor, sinto um conflito irremediável na escrita desta crítica, um lado incapaz de ignorar a importância que Gundam representa para a animação japonesa, enquanto outro não conseguirá esconder meu desgosto pelo ato de presenciar esse vanguardismo. Assistir as duas horas e meia de Mobile Suit Gundam I é uma tarefa difícil, mesmo que necessária. Então gostaria de empurrar esse problema com a barriga e lidar separadamente com os pontos fortes da narrativa e depois com o filme propriamente (o ponto fraco). Talvez ao final encontremos um retorno a uma crítica coesa.
Se tratando de uma obra de 1981 e dentro de um gênero ainda inexplorado, é surreal ver como a temática de Gundam é atual e dialoga com muito do que foi produzido futuramente, em uma indústria pós-Gundam e, por causa deste, estabelecida e comercialmente viável. A convenção do protagonista jovem, inexperiente, mas magicamente talentoso é em seu nascimento subvertida, Amuro não é o jovem soldado digno de uma propaganda militar, é uma criança em guerra, constantemente insegura e ansiosa. Sua decisão de pilotar o robô gigante tem tons trágicos, um abandono de sua inocência que o deixa vazio por dentro, mesmo com a adoração das figuras militares ao seu redor. Há uma profundidade na relação familiar do protagonista, com seu pai militar e sua mãe, que clama para que ele não se junte ao exército. Enquanto outras histórias poderiam usar desta dicotomia de modo nacionalista, do garoto que se torna homem ao aceitar o manto militar, acredito que a narrativa toma decisões importantes para este não ser o caso.
A primeira e mais importante é não dar à guerra os tons nacionalistas que um poderia esperar. Os dois lados, a Federação da Terra e o Principado de Zeon, são pouco explorados para além do que seus nomes indicam e mesmo que acompanhemos majoritariamente as forças da Federação, personagens de Zeon tem bastante tempo de tela e certo desenvolvimento emocional, que impede que os vejamos somente como inimigos sanguinários. Talvez outras histórias escolhessem retratar um conflito entre o lado do bem e o do mal, sendo a guerra o meio de defesa desses valores e, portanto, eticamente justificada. Gundam, por sua vez, escolhe afirmar repetidamente que civis morrem de ambos os lados e que jovens lutam por ambos os exércitos. Amuro escolher lutar pela Federação é esvaziado de heroísmo político, pois a guerra, dentro do filme, não é política, mas sim um vórtex abstrato que coloca os personagens em conflito, onde a referência moral não está nos grandes líderes e nações, mas nos corpos em combate, sejam eles mecânicos ou biológicos
Como um estudante de Relações Internacionais, me sinto um pouco desconfortável com essa abstração. Especialmente pois não tenho total certeza do quão consciente foi essa decisão, posto que as cenas finais da narrativa acontecem ao som do exército de Zeon marchando aos gritos de “Sieg Zeon!”, uma evidente alusão aos nazistas e que joga toda minha tese de guerra sem mocinhos no lixo. Além disso, mesmo quando pilotar o robô é
uma ação moralmente dúbia e pessoalmente destrutiva para o garoto, a música ainda ascende triunfantemente, dando sinais bem mistos quanto o heroísmo apresentado em
tela. De qualquer modo, este sendo a primeira grande animação do gênero mecha, que dialeticamente estabelece suas convenções e imediatamente subverte-as, ou pelo menos as leva para uma possível discussão mais crítica, para mim isto já é bastante impressionante.
Entretanto, qualquer discussão interessante que poderia ser trazida em uma experiência fechada se perde nas duas horas e meia de duração, pautada em uma estrutura terrível de ritmo, pois o filme não é um filme, e sim um compilado de episódios do seriado televisivo. O resultado final é um filme que começa e termina dentro de si, se arrastando de luta espacial para luta espacial sem qualquer cola que ligue as cenas e faça valer o seu tempo total. Talvez se estivesse vendo os episódios separados, com aberturas e encerramentos definidos, poderia aguentar uma história que se move tão lentamente, mas no formato de filme, simplesmente não funciona. Como eu havia dito inicialmente na crítica, a experiência de ver o filme em si é difícil, colocando quaisquer observações em cheque, pois por mais legal que algum elemento da narrativa possa ser, é um parto chegar ao fim do filme e toda boa vontade se esvai.
Importante dizer que esta estrutura maluca não é uma escolha criativa, mas sim uma limitação do contexto de produção da época, onde a demanda por Gundam ainda não justificava mercadologicamente um orçamento para um longa metragem original, de modo que o reaproveitamento dos episódios foi uma imposição orçamentária acima de tudo. O resultado na época foi excelente, com o filme sendo a catapulta para jogar a franquia Gundam ao estrelato no Japão, mas uma vez que não sou um espectador japonês nos anos 80, as limitações gritam demais para serem ignoradas, infelizmente.
No fim das contas, continuo sentindo aquele mesmo desconforto inicial. É difícil não reconhecer a importância histórica e temática de Gundam, mas é igualmente difícil ignorar o quão frustrante é a experiência concreta de assisti-lo nesse formato truncado e inchado. A sensação é a de estar diante de algo importante, mas ainda em estado bruto, quase anacrônico em sua existência. Talvez por isso não consigo dizer que deixei de me importar, mesmo que decididamente não seja capaz de amar o robô gigante.
Crítica Mobile Suit Gundam I (1981)
por Amanda M.
Confesso que entrei em Mobile Suit Gundam I com curiosidade, mas também com o pé atrás, já que não sou uma grande fã de animes, especialmente os mais voltados para robôs e batalhas espaciais. E infelizmente, minha impressão não foi das melhores.
O filme tenta condensar os episódios iniciais da série original em pouco mais de duas horas, mas o resultado é bem confuso. As cenas mudam rápido demais, muitos acontecimentos parecem jogados e tive dificuldade para entender o que estava em jogo na maior parte do tempo. É como se eu tivesse começado uma história no meio e tivesse que correr atrás o tempo todo para acompanhar.
Os personagens também não me cativaram. O protagonista, Amuro, tem atitudes que me pareceram forçadas ou sem muito sentido, em alguns momentos ele é um gênio da pilotagem, em outros está berrando pelos cantos como uma criança mimada. Fica difícil se importar com alguém assim. Os outros personagens aparecem e somem tão rápido que nem dá tempo de se envolver.
Visualmente, reconheço que a animação tem um charme retrô, mas não me prendeu. As batalhas entre os “mobile suits” são longas e repetitivas, e por mais que sejam bem feitas para a época, não consegui me empolgar. A trilha sonora também não ajudou muito: em vez de criar tensão, achei que deixava tudo ainda mais dramático do que precisava.
No fim das contas, Mobile Suit Gundam I foi uma experiência cansativa. Entendo que é um clássico e que tem um peso enorme para quem acompanha a franquia, mas como alguém de fora, que não tem apego ao universo Gundam e não é fã de anime, o filme não funcionou. Faltou ritmo, clareza e principalmente, conexão.
Talvez funcione melhor para quem já conhece o mundo ou tem nostalgia envolvida. Mas para mim, foi uma daquelas sessões que a gente termina mais por respeito à própria paciência do que por prazer.