Crimes do Futuro (2022), David Cronenberg,

 Corpo é Realidade

por Gabriel Molinari


No mais recente longa-metragem de Cronenberg, diretor conhecido principalmente por seu amplo trabalho no subgênero de terror corporal (body horror), tais quais os filmes: A Mosca (1986); Videodrome (1983); Scanners (1981); entre outros tantos; somos apresentados a um mundo onde infecções foram extintas, pessoas não mais sentem dor e órgãos desconhecidos crescem em seus corpos involuntariamente. Neste contexto, acompanhamos um artista de performance chamado Saul Tenser (Viggo Mortensen) e sua companheira Caprice (Léa Seydoux). Seus atos consistem na remoção desses novos órgãos gerados espontaneamente pelo corpo de Saul. Apesar de serem considerados danosos ao hospedeiro, tidos como tumores, é necessário todo um processo de catalogação destes órgãos, incluindo tatuá-los enquanto ainda internos e outras burocracias kafkaescas. 

A verdadeira história se passa apenas como pano de fundo enquanto somos orientados pelo ponto de vista de Saul. Um grupo revolucionário desenvolve “barras de chocolate” feitas de plástico. Tendo os integrantes deste grupo passado por uma série de cirurgias alterando seu sistema digestivo para se alimentarem apenas disso, plástico. Clamam ser este o único caminho possível, o próximo passo evolutivo, a maneira de sobrevivermos a tudo o que fizemos ao meio ambiente e de fato solucionar o problema do lixo. De lado oposto, temos a figura do governo, representada por um detetive que busca apreender o grupo, já que tais modificações corporais são consideradas ilegais, vistas como algo não-natural, não-humano.

Dentre as dezenas de significações que poderíamos dar ao filme, sendo a leitura embasada na teoria queer uma de minhas favoritas (com toda a questão da regulamentação e controle dos corpos) a que mais me parece relevante para análise da obra é a com teor autobiográfico. Crimes do Futuro é Cronenberg olhando para si próprio, para o escopo de sua carreira. Todos os temas com que trabalhou desde meados dos anos 70 até mais recentemente, estão ali (não é à toa que resolveu chamar o filme desta maneira, sendo o mesmo título dado a outro longa seu de 1977). Temos uma cena de sexo oral ministrado num zíper em uma barriga que remete diretamente a Videodrome; temos a espionagem de Scanners, Senhores do Crime; mas principalmente, temos como protagonista um artista que é literalmente dissecado numa máquina de autopsia. 

Saul Tenser é, de muitos modos, David Cronenberg. Crimes do Futuro é, de muitos modos, o próprio refletindo sobre seu processo criativo. Num filme onde tudo é literalizado, onde corpo é realidade, Cronenberg expõe suas entranhas e antecipa todas as reações possíveis a isso - vide a primeira cena de performance onde pessoas passam mal, vomitam, ficam admiradas, sentem tesão. Saul remove os órgãos crescem dentro dele, assina-os com tatuagens e os expõe os ao mundo, não há maneira mais literal de se descrever o processo criativo. A jornada de Saul, parte de alguém que sequer se vê como um artista, para alguém que abraça o que acontece consigo internamente, que aceita a politicidade de suas performances e assim consegue ficar em paz consigo próprio. 

Se o leitor ainda estiver tendo dificuldades em enxergar o filme por esta perspectiva, trago-lhe a seguinte anedota: o diretor, há poucos meses, retirou 18 pedras dos rins. Ao ser confrontado pelo médico que gostaria de fazer testes nas mesmas, analisa-las quimicamente, respondeu não. “Parecem-me bonitas demais para serem destruídas. A arte sempre terá a última palavra”, disse. Reuniu-as, fotografou e pôs à venda como NFT, sob o título de “Inner Beauty”, ou Beleza Interna.


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