Barbie (2023), Greta Gerwig
Barbie é uma despedida à infância
Por Luana Consoli e Thais Kethlen
Barbie é um retorno e uma despedida à infância sob a ótica da mulher adulta. Foi feito para toda menina que cresceu consumindo a filmografia completa, cantando Eu sou assim como você, dançando com as 12 princesas bailarinas e desejando ser uma fada, ou uma sereia, ou uma mosqueteira. Mas é também para aquela adolescente que aos poucos se viu odiando rosa e buscando uma personalidade própria, distanciando-se do padrão inalcançável que a boneca loira representa.
Em Barbie (2023), Greta Gerwig nos entrega uma produção inesperada e cativante, que nos faz olhar com carinho e compreensão para o tempo de menina. Com um roteiro assinado em parceria com Noah Baumbach, o longa se apropria da boneca mais famosa do mundo para criar uma narrativa que flerta com humor, fantasia e uma crítica sutil à própria existência de sua protagonista enquanto ícone cultural.
Desde o anúncio do projeto, Barbie gerou curiosidade sobre como seria possível transformar um produto altamente comercial em um filme relevante e interessante. O resultado, felizmente, é um filme que equilibra o entretenimento com uma abordagem leve de questões sobre identidade, gênero e consumo, sem mergulhar em discussões excessivamente complexas.
Para a Mattel, Barbie representa uma oportunidade essencial de reposicionar a boneca em um mundo que há tempos questiona os padrões que ela simboliza. Desde sua criação nos anos 1950, Barbie foi criticada por promover uma imagem idealizada e inatingível da mulher. Em resposta a essas críticas, o filme apresenta uma versão da personagem que vai além da perfeição plástica, explorando dilemas existenciais e uma visão de diversidade representada por Barbies de diferentes corpos, profissões e origens.
Ao mesmo tempo, Barbie não deixa de ser um movimento comercial. Em um cenário em que mulheres são responsáveis por grande parte das decisões de compra nas famílias, sendo 96% delas responsáveis por comprar os artigos para os seus lares e 37% chefiando esses lares - como apontado na pesquisa Tendências de Consumo para a Mulher Brasileira de 2019, liderada pela Nielsen -, o reposicionamento da marca é estratégico. O longa, portanto, funciona como uma ferramenta de marketing sofisticada, que dialoga com um público feminino moderno, mas ainda tem como objetivo final vender produtos.
A história começa na Barbielandia, uma comunidade matriarcal onde todas as Barbies e Kens vivem suas vidas perfeitas: as mulheres são autoconfiantes e bem-sucedidas e ocupam todos os cargos de poder, enquanto os homens são fúteis e sem muito conteúdo - a definição de “marido-troféu” que conhecemos hoje em dia. Tudo começa a mudar quando a personagem principal, a Barbie estereotipada (Margot Robbie), se depara com pensamentos humanos que não existem naquela realidade - como a morte.
Para resolver o problema, ela é aconselhada a viajar para o mundo real e encontrar a criança que está brincando com a boneca e, consequentemente, transferindo suas emoções. Com seu companheiro não convidado Ken, Barbie vai para Los Angeles e conhece Gloria, mãe de Sasha, a adolescente dona do brinquedo. Acontece que a responsável por catalisar os sentimentos confusos para a boneca não foi Sasha, mas sim a mãe, que estava brincando com as coisas da filha em um momento de nostalgia e infelicidade. O filme começa então a se encaminhar quando as três, juntas, vão para a Barbielandia e encontram uma sociedade completamente transformada e patriarcal - graças à Ken, que teve contato com isso no mundo real. Agora, o objetivo das mulheres é apenas um: se encorajarem e mudarem essa situação.
O roteiro de Barbie merece elogios por conseguir unir fantasia e realidade de forma equilibrada. A ambientação inicial em Barbielândia é um espetáculo visual que remete ao mundo idealizado da boneca, com casas, carros e cenários que parecem saídos diretamente de uma caixa de brinquedo. Contudo, o filme logo rompe com essa perfeição ao transportar a protagonista para o mundo real, onde ela se depara com problemas que nunca imaginou enfrentar, como imperfeições físicas e questões de autoestima.
Um dos pontos fortes do roteiro é sua capacidade de usar o humor para suavizar críticas sociais. A forma com que as reflexões sobre gênero, trabalho e padrões de beleza são introduzidas torna o filme acessível e identificável para públicos de diferentes idades. Esse equilíbrio entre leveza e crítica é o que mantém o filme envolvente sem se tornar didático ou excessivamente sério.
A trilha sonora, com destaque para a emocionante What Was I Made For?, de Billie Eilish, complementa a narrativa com músicas que ajudam a construir o clima de cada cena. Os números musicais e as coreografias também são bem dosados, adicionando um toque de descontração que torna o filme ainda mais agradável de assistir.
O elenco de Barbie é outro grande destaque do filme. Margot Robbie entrega uma atuação marcante como a Barbie estereotipada, capturando tanto a leveza quanto a vulnerabilidade da personagem. Sua transição de uma boneca confiante para uma figura em crise existencial é convincente e emocionalmente ressonante, justificando os elogios recebidos pela crítica. Para dar vida à personagem, ela contou no vídeo “Actors on Actors”, da revista Variety, que se inspirou em um episódio do podcast American Life: “Greta encontrou esse episódio [...] em que uma mulher não consegue fazer introspecção, pois não tem a voz na cabeça que narra constantemente a vida do jeito que todos nós fazemos”.
Ryan Gosling, por sua vez, surpreende como Ken, trazendo um equilíbrio perfeito entre humor e carisma. Sua performance é tão envolvente que, em alguns momentos, chega a roubar a cena, especialmente nos números musicais, como o hilário e energético I'm Just Ken. É evidente que Gosling se divertiu no papel, e isso transparece na tela. A experiência do ator com esse estilo de filme já havia sido vista anteriormente na obra La La Land (2016), onde contracenou - e cantou! - com Emma Stone.
Outro destaque é America Ferrera, que interpreta uma personagem humana crucial para conectar o público às mensagens do filme. Sua atuação traz autenticidade e reforça o contraste entre o mundo idealizado de Barbielândia e as complexidades da vida real, principalmente sendo uma mulher latina no meio corporativo e tendo uma filha na fase da adolescência.
A escolha do elenco secundário também foi bastante estratégica. Atrizes e atores conhecidos, como Simu Liu e Issa Rae, adicionam um toque de familiaridade que enriquece a experiência do público. Com sucessos recentes, eles nos fazem dar um gritinho de empolgação quando aparecem na tela. Até a cantora Dua Lipa, responsável também por uma das músicas do filme, entrou na onda!
Visualmente, Barbie é um espetáculo. A direção de arte e o design de produção se destacam ao recriar Barbielândia com um nível impressionante de detalhes. As casas de boneca, os figurinos extravagantes e até os movimentos dos personagens — que imitam a rigidez dos brinquedos — foram cuidadosamente planejados para capturar a essência do universo Barbie.
A fotografia também merece destaque. As cenas em Barbielândia utilizam iluminação intensa e cores vibrantes para criar um ambiente idealizado, enquanto as cenas no mundo real têm uma estética mais naturalista, com texturas e ângulos que reforçam a imperfeição da realidade. O uso do rosa como cor predominante não apenas define a identidade visual do filme, mas também transcende as telas, influenciando a moda e a cultura pop no mundo real.
Um dos elementos mais interessantes nos aspectos técnicos de Barbie é o uso cuidadoso da posição de câmera para reforçar a distinção entre Barbielândia e o mundo real. Em Barbielândia, os personagens são frequentemente centralizados nos enquadramentos e filmados de frente, com uma iluminação homogênea e lisonjeira que realça a perfeição plástica e idealizada do cenário. Já no mundo real, a câmera adota ângulos mais variados, explorando os perfis e destacando as texturas da pele, criando uma sensação de realismo e vulnerabilidade. Essa mudança sutil, mas eficaz, contribui para diferenciar visualmente os dois universos e reforçar as temáticas da narrativa.
Greta Gerwig demonstra sua habilidade ao transformar um conceito potencialmente limitado em uma obra criativa e memorável. Seu toque autoral é evidente, especialmente na forma como ela aborda temas complexos de maneira acessível e com um humor refinado, traços também presentes em suas outras obras.
A forma de direção autêntica de Greta, já observada em outras obras como Little Woman e Lady Bird, preza pela demonstração de sentimentos nas críticas sociais, o que gera ainda mais conexão com o público (especialmente o feminino, que é o alvo de grande parte de suas obras).
O resultado é um filme que entrega uma experiência cinematográfica envolvente, merecendo o reconhecimento recebido, como o Critics' Choice Award de Melhor Roteiro Original.
Barbie é um filme que encanta, diverte e emociona. Foi feito por mulheres e para mulheres. É uma celebração da infância feminina e perda da inocência. Barbie consegue traduzir a dor existente quando as bonecas perdem sua vez na rotina da menina, que agora lida com compromissos terríveis como ir ao ginecologista.
É o tipo de filme que te obriga a convidar o grupo de amigas mais próximas para se reunir e assistir — seja para rir, cantar ou refletir sobre as expectativas que moldam nossas vidas. Uma experiência visual e emocional que vale a pena ser compartilhada.
Ser Barbie nunca foi o suficiente
Por Lívia Goulart
Se você acha que um filme sobre uma boneca famosa vai ser apenas um desfile de cores vibrantes e clichês açucarados, prepare-se para repensar tudo. Barbie (2023), dirigido por Greta Gerwig, é uma explosão visual que te puxa para dentro de um mundo artificialmente perfeito, só para depois virar tudo de cabeça para baixo. Não se deixe enganar pela superfície brilhante e pela estética que vibra: o filme é uma montanha-russa emocional que brinca com as noções de identidade, feminilidade e até mesmo de cinema comercial.
O filme ganha o espectador logo de cara com a Barbieland, um lugar que parece ter saído direto de uma propaganda dos anos dourados: casinhas impecáveis, figurinos brilhantes e um mundo onde tudo - dessa vez - é... rosa. Lá, cada Barbie é extraordinária. Tem presidente, astronauta, escritora premiada, enquanto os Kens são, no máximo, coadjuvantes na história. Porém, a perfeição começa a estremecer quando a Barbie "estereotipada" (Margot Robbie, em uma atuação magnética) percebe que algo não está certo. Com pés chatos, celulite e um vazio existencial que não deveria existir no mundo rosa, ela embarca em uma jornada ao mundo real que não só desafia sua ideia de si mesma, mas também desconstrói toda a mitologia em torno da boneca mais famosa do mundo.
E é aí que o filme pega você de surpresa. O que começa como uma sátira colorida se transforma em uma viagem surreal e emocional, com cenas que transitam entre o absurdo e o comovente. Uma Barbie perdida no mundo real, encontrando hostilidade e humanidade em igual medida, enquanto Kens descobrem o poder — e os perigos — de serem vistos. Entre coreografias hilárias, diálogos mordazes e momentos de pura introspecção, o filme dança entre a comédia e o drama sem perder o ritmo.
Cada escolha estética é pensada para intensificar a experiência: a fotografia brinca com exageros visuais, enquanto a trilha sonora vai de faixas épicas a canções tão irônicas que é impossível não rir da própria gravidade da situação. Tudo isso contribui para criar um filme que parece ao mesmo tempo leve e profundamente desconcertante, como se estivéssemos testemunhando um ensaio sobre o caos dentro de um cenário de brinquedo.
O roteiro é uma aula de dualidades. É divertido, mas nunca simplista. É absurdo, mas nunca despropositado. Gerwig consegue criar um espaço onde cada espectador pode encontrar algo: crítica social, nostalgia ou até mesmo um reflexo incômodo de si próprio. É impossível assistir sem, em algum momento, se pegar questionando tudo: por que valorizamos o que valorizamos? Quem dita as regras do jogo? E como encontrar nosso lugar em um mundo que parece já ter decidido o que devemos ser?
Barbie é uma experiência única, que desafia e diverte na mesma medida. Ao final, você sai com a sensação de que não assistiu apenas a um filme, mas viveu uma reflexão cuidadosamente embalada em glitter. Seja você um fã de cinema pipoca ou de histórias que fazem pensar, o convite está aberto: deixe o rosa te mostrar um espectro muito maior de cores.
Crítica - Barbie (2023) de Greta Gerwig
“Uma despedida do mundo cor de rosa para as mulheres”
Por: Duda Martins
A diretora Greta Gerwig criou o filme Barbie (2023) para relembrar todas as mulheres dos tempos em que elas eram crianças e o mundo real ainda não era um perigo. A obra transcende as expectativas associadas à boneca icônica da Mattel e passa longe de ser um entretenimento raso americano. A narrativa do filme é inteligente, cheia de emoções e visualmente deslumbrante.
A abordagem da história de Barbie é única. Greta Gerwig, já conhecida por seu toque autoral em filmes como Lady Bird e Adoráveis Mulheres, traz um roteiro, co-escrito por Noah Baumbach, com um equilíbrio perfeito entre humor e questões de gênero, identidade e expectativas sociais. A trama é ambientada num mundo vibrante de fantasia que ao ser contrastado com o mundo real, explora complexidades da experiência feminina de maneira acessível, mas sem subestimar o público.
A protagonista é interpretada por Margot Robbie, que traz a Barbie a vida de forma brilhante. A atriz consegue humanizar uma boneca de plástico e dar profundidade emocional à sua jornada. A boneca perfeita que se torna um ser questionador e vulnerável é conduzida com sensibilidade e carisma. Por outro lado, Ryan Gosling rouba cenas como Ken, um personagem que inicialmente parece unidimensional, mas que se transforma em uma figura cômica e trágica. O coadjuvante explora temas como masculinidade frágil e insegurança de uma forma natural e engraçada.
A estética do longa é uma explosão de cores e design criativo, remetendo ao universo da boneca enquanto cria uma sensação de encantamento. A direção de arte e os figurinos merecem destaque, assim como a trilha sonora contagiante, com canções originais que se integram perfeitamente à narrativa.
Com esses elementos, o filme questiona os próprios estereótipos que a boneca ajudou a consolidar. Ele desafia o espectador a refletir sobre liberdade, auto aceitação e empoderamento. Assim, Barbie eleva o significado da boneca para algo muito além do plástico e da brincadeira. Greta Gerwig entrega um filme que entretém, provoca e emociona, consolidando seu lugar como uma das diretoras mais relevantes da atualidade. É uma obra que ficará na memória não apenas como um evento cultural, mas como uma reflexão sobre como redefinimos ícones e narrativas.
BARBIE (2023)
Ana Vitória Farion1
De tempos em tempos somos presenteados com lançamentos de filmes que parecem fazer o mundo todo parar. Seja por desenvolverem personagens queridos pelo público, seja por ousarem contar uma nova versão para uma narrativa já muito conhecida, ou mesmo por apresentarem algo novo e diferente que desperta a curiosidade do público e o pega de surpresa. E, eventualmente, existem filmes que parecem dar check em todas essas opções.
Como uma mulher nascida e crescida nos anos 2000, filmes da Barbie foram responsáveis por ocupar um espaço considerável nas minhas tardes de infância e adolescência. Existe uma memória muito afetiva atrelada às narrativas, músicas e personagens dessas animações, de modo que, mesmo hoje, é ainda muito difícil abandoná-las por completo. Tal qual a maioria dos filmes animados populares do período, as produções da Mattel sempre contaram com um público alvo muito bem definido: crianças, majoritariamente meninas, que pudessem tirar das narrativas inspirações e aprendizados a serem levados consigo ao longo da vida: Seja corajosa! Seja autêntica! Seja gentil!
Assim sendo, a notícia de que a ‘boneca mais famosa do mundo’ ganharia um filme em live action com uma história original - e que essa seria voltada para um público adulto - foi mais do que o suficiente para despertar a curiosidade pública. O que mais haveria Barbie a oferecer que ainda não tivesse sido contemplado? De que modo essa personagem, tão fortemente associada à infância, poderia transmitir algo para pessoas que, há muito, não compreendiam mais seu público alvo - ou, ao menos, o público alvo de seus produtos? Era uma tarefa arriscada, mas é quase fácil esquecer deste risco ao assistir Barbie de 2023.
A obra de Greta Gerwig é, por falta de palavra melhor, surpreendente. Em escala, a produção é gigantesca e de encher os olhos. Os cenários, em especial na Barbielândia, são um deleite e muito criativos na medida em que reproduzem as proporções e lógicas ímpares de casas de bonecas. A direção de arte e cinematografia é impecável, criando uma identidade visual única ao filme na mesma medida em que permite dar os tons da obra nos momentos certos. Entre o elenco, que dispensa comentários, Ryan Gosling por diversas vezes rouba a cena em sua interpretação como Ken, mas, não podendo ser diferente, quem realmente brilha é Margot Robbie. Se ainda houvesse quem questionasse a versatilidade da atriz australiana, sua interpretação como Barbie certamente deve ter eliminado a dúvida.
O roteiro de Gerwig e Noah Baumbach é divertido e confiante, equilibrando de forma espetacular doses calculadas de humor e drama. Autoconsciente em seu humor, o filme parece saber quando e como fazer o espectador rir - bem como conversar diretamente com ele - tirando proveito de seu elenco de peso. Em contrapartida, os momentos dramáticos são pontuais, mas lindamente executados e dotados de sensibilidade.
A sensação que fica ao finalizar o filme é a de que a diretora compreendeu, em um nível muito profundo, o que a obra deveria ser, muito além do que era esperado que fosse. Barbie é um filme suficientemente nostálgico, que não sente necessidade em se perder nas referências ao passado, e que reconhece em seu público pessoas já amadurecidas, para as quais a fantasia ainda desempenha um papel fundamental, mas que buscam aprendizados que as ajudem a navegar impasses muito mais reais e complexos que aqueles da infância. Barbie não promete resolver os preconceitos de gênero, ou mesmo derrubar o patriarcado - ao menos não aquele fora da Barbielândia - mas oferece a esse novo público uma esperança muito mais de auto estima e autoconhecimento muito mais concreta. Uma evolução tangível, e lindamente poética, de nossas memórias e dilemas de infância.
1 Graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referência:
Barbie. Direção de Greta Gerwig. California. Warner Bros., 2023.