Crítica “Estômago”, por Giovanna Goin, Júlia Dias, Matheus Vargas, Roberto Roberto Amazonas e Vitórya Navegantes

 

Crítica “Estômago” - Crítica Cinematográfica


Giovanna Goin, Júlia Dias, Matheus Vargas,
Roberto Roberto Amazonas e Vitórya Navegantes 



 



Estômago: o sabor do poder e da sobrevivência

Dirigido por Marcus Jorge, revela como a culinária se torna uma metáfora poderosa para poder, sobrevivência e dignidade em um enredo com pitadas de ironia e fatias de críticas sociais

O filme "O Estômago" é um longa metragem brasileiro de 2007 que mistura comédia e drama sob a direção de Marcus Jorge. Narrado pelo protagonista Raimundo Nonato, interpretado por João Miguel, a trama oferece uma reflexão sobre o poder, através da comida. A narrativa acompanha a ascensão e queda de Nonato, que acaba na prisão após cometer um crime. É o tipo de produção que pode ser assistida várias vezes sem perder seu encanto. O espectador acompanha, com risos e aflições, a transformação de um homem doce e inocente para um indivíduo esperto e ambicioso. Esta revelação é mediada pelas complexidades relacionadas à culinária, gula e luxúria. Os personagens, apesar de parecerem caricatos, são movidos por sentidos primitivos e reais: o cheiro da comida, da cela, do perfume, a fome, o sabor, a sede e o sexo.


Desde o início, Nonato percebe que a vida é como uma cozinha. Um nordestino que chega à cidade grande em busca de melhores condições de vida. Inicialmente, ele trabalha em um pequeno bar, onde descobre o mundo culinário e recebe seus primeiros elogios por sua habilidade na cozinha. Destacando-se na produção de coxinhas, é convidado a trabalhar em um renomado restaurante italiano. É fácil torcer para que ele ganhe seu espaço, seu reconhecimento profissional e seu relacionamento amoroso. 


A habilidade do protagonista de ser encantador não reside em charme ou beleza, mas em sua aura inocente que gera um profundo apego emocional. Mesmo após sua prisão, ele mantém um sentimento de doçura que permeia todo o filme. A trama cria um suspense contínuo através da narrativa não linear e nos deixa curiosos para entender o motivo de seu encarceramento. Os atores que contracenam com João Miguel não deixam a desejar. Fabíola Nascimento interpreta o par romântico do personagem principal, a prostituta Íria. Já o companheiro de cela Bujiú, interpretado por Babu Santana, oferece uma presença humorística e retrata aspectos do sistema carcerário brasileiro.


São abordadps temas de poder, sobrevivência e a complexa relação entre opressor e oprimido, exploração do trabalho e a busca por melhores condições de vida nas grandes cidades. A culinária serve como uma metáfora poderosa para a ascensão social e a luta por dignidade. Os aprendizados culinários de Nonato são representados pelo vinho e queijo apresentados por seu chefe. A falta de conhecimento sobre gorgonzola, por exemplo, ilustra a desigualdade social, questionando onde Nonato estaria sem essa desigualdade. 


Nas cenas em que está imerso na precariedade do sistema carcerário brasileiro, com celas superlotadas e presos se alimentando de comidas estragadas, Nonato se torna uma figura respeitada por meio das suas habilidades culinárias. No seu relacionamento com Íria não é diferente. Ela usa sua relação com o nordestino para garantir sua subsistência. Ao mesmo tempo, Nonato se apega a Íria, buscando validação e afeto. Essa dinâmica revela a complexidade das relações de poder e sobrevivência, criando uma interdependência disfuncional e crítica da condição humana. Uma cena emblemática é quando Íria, aparentemente serena, come macarrão durante a transa. Íria, com sua voraz fome literal e metafórica, contrasta com a natureza mais ingênua e submissa de Nonato.


O roteiro é afiado e cheio de diálogos memoráveis que conseguem ser hilários e tensos ao mesmo tempo. Como o longa expressa a preocupação com o poder e a sobrevivência por meio da metáfora de cozinhar, é uma jogada difícil e profundamente ressonante. Ao explorar o nojo, a direção de Marcus Jorge contrasta a precariedade da cozinha e as unhas sujas de Nonato com os takes requintados da câmera. No entanto, as reações satisfatórias dos personagens ao experimentarem a comida fazem o espectador desejar provar também. A evolução de Nonato na cozinha é marcada pela higiene de suas mãos, inicialmente sujas e depois limpas, até mesmo na cadeia.


No âmbito técnico, a narrativa não linear e a curta duração mantém a dinamicidade do filme. A divisão de dois cenários distintos que constroem a mesma ideia da trama é executada com maestria, assegurando a coesão e sentido do desfecho com todo o desenvolvimento do filme. "Estômago" transforma a ideia da cadeia alimentar em um roteiro notável, utilizando um presídio para conferir um sentido literário e profundo a toda a narrativa. A fotografia de Toca Seabra e a trilha sonora de Giovanni Venosta complementam perfeitamente o tom do filme. A cinematografia consegue capturar tanto a crueza da vida na prisão quanto o calor e a vivacidade da cozinha, criando uma atmosfera rica e envolvente. A edição, que alterna entre as duas linhas temporais, é fluida e mantém o ritmo do filme, mantendo o público engajado do começo ao fim.


A diversão e o grotesco são a combinação que tornam “O Estômago” uma das melhores produções nacionais. Detalhes e referências podem passar despercebidos na primeira exibição, por isso é recomendado assistir novamente para compreender e sentir plenamente as dimensões da culinária e comilança 100% brasileira.


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